segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A hora do despertar


O rádio relógio toca. Olhos embaçados de sono mal enxergam as horas.
A porta do quarto está fechada, mas não trancada, como sempre. 03h59min (três e cinqüenta e nove), agora os olhos mais despertos observam nitidamente o relógio. Era à hora do despertar.
O coração acelerado, as artérias pulsavam compulsivamente. Os calafrios ao ouvir os primeiros rangeres das tábuas da velha escada. Degrau por degrau, estalos de tábuas soltas e madeiras estralando.
As janelas estão trancadas, as árvores chacoalhando ao sopro do vento.
A concentração ao olhar pela janela é quebrada com uma batida na porta do quarto. O susto o joga novamente para o interior da cama. Silêncio.
Os pensamentos em confusão questionavam quem estaria naquela hora ao pé da porta?
Mais duas batidas fortes e ocas. Lençóis voam, travesseiro vai ao chão. Agora em pé e com os olhos mais acostumados ao escuro e, atentos procuram uma saída. Uma decisão.
O medo que paralisa. O medo de algo desconhecido e tão próximo.
Roupas e sapatos jogados ao lado da cama, tropeçando em lençóis e com o olhar fixo na porta, agora os olhos captam uma sombra movendo-se rapidamente pelo vão da porta. Mas a casa estava escura, eram 03h59min da manhã, não havia luminosidade para criar uma sombra. Um breve momento de concentração e raciocínio, refletindo sobre a causa da sombra. Não era momento para se pensar muito.
Uma nova batida na porta seguida por um estrondo. Poeira cai do teto.
Um armário próximo a porta balança e joga poeira no ar. Agora os olhos
fixos na porta aberta. No corredor e na escuridão, um breu e nada. Paralisado pelo choque.
Aos poucos uma sombra vem se formando na entrada da porta. Vem ganhando
um tom diferente da escuridão. Ganhando forma e traços.
As pernas perdem as forças. Os olhos latejam. Não havia pernas ou pés na forma frente à porta. Não tocava o chão. Parecia um grande pano negro desbotado com um capuz caído à frente, imóvel. Apenas se tornando mais visível ou mais real aos poucos.
Novamente os olhos buscam a janela e voltam rapidamente para o ser. O capuz ergue-se bruscamente. Como se fosse um movimento rápido de uma cabeça erguendo-se, se pondo ereta; um terror frio jorra adrenalina nas veias. Um par de olhos brancos que aos poucos ganham um tom amarelado nas órbitas. Olhos verticais, como se fosse um réptil. Uma breve piscada dos estranhos olhos. E um tilintar luminoso logo acima da cabeça do ser abominável que ganha forma e vida frente à porta.
Agora os olhos se prendem ao tilintar, um breve reflexo da luminosidade da lua que entra pela janela. Uma lâmina, uma enorme foice se torna visível. Segura por um fino braço saído da manga do grande pano que cobria o ser. A foice era suspensa pela mão esquerda da criatura que agora erguia o braço e a mão direita esticada com o dedo indicador apontando para o peito do homem assustado.
Olhando de forma compenetrada para o dedo esticado do espectro a sua frente e segurando forte o próprio peito, colocando a mão em cima do lado esquerdo amassando a camisa. Um olhar rápido para o próprio peito. Os olhos voltam para a criatura que agora aponta em direção da cama. O olhar acompanha a direção do dedo fino e longo esticado para a direção onde antes dormia. A alma congelada. Uma eletricidade que corta as costas.

Na cama jazia um homem em decomposição. Cadavérico, com os cabelos e unhas longas. Com ainda finos pedaços de pele e músculos colados aos ossos.

Engasgado com o ar e no pavor do momento um grito melancólico e aterrorizado. Era o som que contaminava a mente. Porém era um gripo surdo. Apesar dos berros o silêncio era inviolável. Nada se ouvia. Foi o bastante para o desespero causar um surto irracional. O olhar não voltou para a criatura. Simplesmente fixou na janela e
logo em seguida só ouvia o som de vidro e madeira estilhaçando, estourando. Um forte impacto contra o teto que cobria a varanda e uma nova queda dessa vez em cima do chão coberta com gramíneas alta e mal cuidada. Via o céu estrelado, e uma lua do quarto minguante e apenas a metade da parte visível da Lua está iluminada, como no quarto crescente, só que desta vez a parte iluminada está voltada para o lado do nascer do Sol.
Na janela não se via nada, apenas pedaços de madeira e vidros quebrados. E um rápido tilintar de luminosidade refletida na lâmina fria de uma foice portada por algo nada agradável.
Correndo contra um leve vento. Correndo para longe da casa, da criatura. Apenas para longe. A casa era cercada por um bosque. Muitas árvores e ao fundo o som da corrente de um rio. O pouco da claridade era advindo da lua. Em menos de uma hora o sol nasceria, era a esperança no qual se agarrar e ir para longe, sem se importar com o
rumo. Quanto mais adentro do bosque mais escuro se tornava a noite.
Uma clareira e uma carroça. Movimentos ao lado da carroça. Alivio. Um grito para chamar a atenção das pessoas da carroça. E novamente não se ouvia a voz, nem grito. Era uma carroça sem cavalo, velha e cheia de peixes que fediam a podre. No centro da clareira a luz era prateada e bem iluminado era. Muita força para reduzir a corrida e para de uma vez. Um vento balançava as arvores e dois animais levantaram as cabeças e cheiraram o ar. Ambos estavam declinados dentro da carroça comendo os peixes. Eram peludos, com grandes focinhos com enormes mandíbulas. Os pêlos sujos de sangue pingavam ao chão. Um deles levantou-se e cheirou o ar novamente quando o segundo rosnou ameaçadoramente quando o outro ficou em pé. Não demorou para ambos
olharem diretamente para os olhos que os observavam sem saber mais o que fazer e como sair do pesadelo. Eram maiores do que ursos e mais ágeis do que lobos. Era a morte com garras e presas feitas para matar.
Um último gesto desesperado de brigar pela vida. Uma última tentativa
de fugir do terror antes de se entregar e deitar sufocado.
Corria quando ouvia os uivos que ecoavam pelos bosques. Pulava raízes de árvores e se embrenhava no mato e pequenos arbustos pelo caminho.
Viu a saída, o início do fim do bosque. Era a grama alta e mal cuidada e logo à frente a casa com a janela quebrada. Mas impossível ser.
Corria em sentido contrário a casa, como pode voltar. Agora chorava e pedia ajuda a qualquer coisa que pudesse o ouvir. Virou-se de costa para voltar a correr para o bosque no momento em que ficou paralisado e com a boca aberta, suor frio e jogado em um nada. Eram os olhos amarelos de serpente dentro do capuz. Trajado com seu pano escuro desbotado pelo tempo; segurando a foice com a lâmina bem acima da
cabeça. A criatura o encarava sem expressão. E veio o golpe com a lâmina da foice bem em direção ao centro da testa. Escuro. Sem sentido.


A companhia do rádio relógio toca. Os olhos abrem-se com sono meio embaçados.
Ao olhar para o relógio gelou ao ver o horário 03h59min. Era à hora do
despertar.
O frio do medo e o primeiro ranger da escada. Madeira estalando e a
porta fechada, mas não trancada, como sempre

sábado, 3 de dezembro de 2011

O Lobisomem de Sallun


Corria pelo campo. O fogo queimava a alma e ouvia o som da besta se aproximando.

A visão começou a ficar amarelada e aos poucos turva.

Desespero. Procurava abrigo. Os minutos corriam pelo corpo.

Sentia as dores, a voz da consciência se afastava e os sentidos eram dominados. Sabia que a besta estava chegando.

Caído ao chão do campo. Contorcia-se de dor e angústia. E no fundo ouviam-se gritos de mulheres, latidos de cães e choros de crianças.

A visão escureceu. E segundos depois voltava aos poucos. A noite ganhava uma nova aparência. Novas cores, um mundo em preto, branco e amarelo. Não havia mais escuridão.

A fúria era algo descontrolador. Barulhos. E uma pancada.

Olhos cerrados em um homem. Enxergava a vida nos olhos do rapaz, que agora corria assustado.

Galopava em sua direção. Rapidamente e com um único movimento o homem ia ao chão. Morto e com sangue escorrendo de seu pescoço. A vida ia-se.

A fome. A sede. A fúria. Era a besta.

Uma porta estoura-se. Gritos de mulheres. Unhas rasgavam a madeira do assoalho. Uma mulher desmaia. Todos gritam. Mas era tarde. A criatura estava saciando sua fome e sua sede.

O anjo da morte ceifava mais uma vida. Sangue e carne espalhados.

A criatura agora corria rumo à floresta. Seguia a lua, sua mãe. E chorava por ser o que era.