domingo, 22 de maio de 2011

[Conto 2, Parte 1] Lua Prateada olhos amarelados

Os olhos se abrem sempre no mesmo momento. Sempre na mesma cena, qualquer sonho transforma-se em pesadelo. Chegou um tempo que eu não sabia se era dia ou noite, se chovia ou se fazia sol. Meu mundo não era nada além de um quarto, banheiro e cozinha. Minha janela era minha mente, meu mundo girava em torno das lembranças e pensamentos que vagueavam e diluíam aos poucos. O sono volta sempre pesado, a mente pede descanso, mas nego há dias.

Algum dia do mês de maio era o que eu sabia. Minha localização no tempo. Acordei depois de cochilar, olhei para a televisão desligada, sempre que olhava para o aparelho sentia uma sensação vazia, era como se eu não tivesse vontades nem tivesse o menor sentimento. Pensava em nada, apenas a queria desligada. A guitarra encostada no canto do quarto permanecia muda e empoeirada, nos momentos ruins o som que tirava dela me animava, me levava para outro lugar, fora do que eu vivia. Dessa vez nem ela surtia efeito algum, não tinha motivos para tocá-la, não me animava. Levantei da cama e segui até o banheiro, olhei pela janela e ainda não havia anoitecido, porém a luminosidade não era forte, calculei que poderia estar perto das 18 horas. Nenhuma luz acesa; fui tomar um copo d’água, o som do galão e da água caindo foi me entorpecendo, pensava o que estava acontecendo, porque estava tudo desse jeito, tudo muito silencioso, sentia a água escorrendo pelos meus dedos, voltei a si.

Não tinha mais o sono que entorpecia até a alma, parecia que caminhava por uma estrada na qual ninguém mais viajava. Não tinha interesse em saber o que falavam, parecia que todas as pessoas fossem previsíveis, tudo muito óbvio, ou simplesmente eu estava fora de freqüência, sem a sincronia comum das pessoas.

Todas essas sensações, havia quatro dias que as sentia, foram revertendo-se em uma curiosidade, uma vontade que até então desconhecia, queria saber o que acontecia ou aconteceu depois da madrugada em frente ao terreno da estação, o que havia se passado com os policiais, será que algo anormal acontecia na cidade para a qual nem pela janela olhava.

Começo de noite, se não estou enganado era uma sexta feira ou sábado, tenho essa convicção, pois era uma noite relativamente movimentada na cidade, carros e mais carros passavam pelo centro, subiam a avenida, era a juventude sendo guiada pelos hormônios a flor da pele, era a sede por cerveja, álcool, mulheres por homens e vice versa, era o natural da vida acontecendo, os jovens procurando seu tempo, seu momento.

Subia a avenida, caminhava tranquilamente, apreciando todo o movimento dos carros, as pessoas falando, algumas exaltadas outras tímidas; gostava de observar a grande igreja, uma bela catedral suntuosa que ficava em frente a uma praça extremamente arborizada, gostava daquela igreja antiga, trazia a paz, pelo menos a mim, no meio caótico do centro da cidade, realmente era uma noite de final de semana; e eu vislumbrava tudo como se estivesse fora daquele plano real, observando tudo por uma janela, de longe. A noite estava gostosa, não choveria e nem fazia calor, subia a avenida e imaginava o que acontecia dentro da praça arborizada, drogas, álcool, casais tarados, quem sabe, ou simplesmente casais de namorados apreciando a noite juntos; eu iria tomar minha cerveja e conversar com os habituais freqüentadores do Solt bar, do inusitado Geraldinho. Era um bar que ficava no centro da cidade, havia muitos bares pomposos naquela região, “bem” freqüentados, jovens com um bom poder aquisitivo, desfile de carros e motos, realmente havia esses bares, mas nada disso me mostrava interesse, não tinha boa impressão desses lugares, na minha cabeça deveria ser tudo muito chato, pessoas muito iguais, assuntos de uma mesmice padrão, nada da minha freqüência. Eu achava interessante o Solt bar, o dono era mais doido que muito dos bêbados ali presentes, havia estudantes que apareciam às vezes e davam um ar diferente ao bar para quem passava de carro e desconhecia o lugar. Entretanto o que me chamava à atenção eram as figuras que surgiam, algumas eram “figuras carimbadas”, sempre presentes, faziam parte do lugar; também era ponto de encontro de alguns motoqueiros. Muitos grupos de roqueiros, punks, cabeludos vestidos de preto, no geral, formavam tudo junto um ambiente imprevisível, às vezes leve outras vezes pesado, sempre algo diferente acontecia naquele lugar.

Havia chego à esquina do bar, passava em frente a uma farmácia 24 horas, sempre que andava pelas ruas eu emergia em pensamentos, prestava atenção nos detalhes do cenário a minha volta, porém os pensamentos me levavam para longe, às vezes pelas lembranças, outras por duvidas sobre o futuro, cada detalhe era uma viagem, foi em uma dessas distrações que levei um susto, enquanto atravessava a rua em direção as pessoas que agitavam-se em frente do estabelecimento, foi como se uma voz me chamasse e algo passasse rente a minha cabeça, uma corrente de vento, algo assim, olhei para trás e para os lados, procurando alguém próximo de mim, havia duas meninas se beijando em frente de uma porta fechada, elas gemiam e faziam ruídos em baixo tom, talvez o bastante para chegar a meus ouvidos.

Muitas pessoas com copos de cerveja na mão, conversavam, riam, a principio não havia visto nenhuma pessoa conhecida. Adentrei, puxei um banco e me sentei no balcão do bar, as mesas externas estavam lotadas, muitas pessoas sentavam-se na calçada do outro lado da rua.

Fiquei quieto, observava as pessoas que estavam perto de mim, elas falavam sobre um grupo de extermínio ou sobre uma gang violenta, um homem careca falava em tom meio chapado.

- Dizem que é um grupo racista, uma molecada que está matando quem mora na rua. Em São Paulo tem uns filhinhos de papai que ateavam fogo em moradores de rua, vai saber o que fazem aqui. - Quase todos no bar falavam sobre isso.

- Como podem ter coragem de matar uma pessoa que já está acabada nas drogas e ainda fica sofrendo na rua? É muita filha da putagem. – diz um homem franzino de óculos, aparentemente inteligente. Geraldinho puxa um pedaço de pau, que ele deixa debaixo do balcão e fala alto quase dando risada.

– Quero ver o maldito que vai querer matar alguém aqui, eu quebro as pernas antes disso. - Todos fazem barulho e zombam da brincadeira do gordinho simpático.

- E o seu madruga, sumiu mesmo? Ninguém o viu em lugar algum. – pergunta o homem de óculos. Seu madruga era um morador da praça que fica em frente ao bar, era um homem magro e com um grande bigode, era “adotado” pelos freqüentadores do bar.

-Sumiu mesmo. Antes de ontem ele comeu um lanche de salame aqui e no dia seguinte só acharam algumas tralhas debaixo da arvore que ele costumava dormir, creio que ele já era. – falou em tom sombrio o homem careca, sentado ao meu lado. Continuavam conversando, Geraldinho me cumprimentou dizendo.

- Quanto tempo. Pensei que tivesse sumido também, o Xandão disse ontem que faz uns três dias que ninguém te via em lugar nenhum. O que aconteceu? – Geraldinho me servia uma garrafa de cerveja e um copo, permanecendo com os olhos em mim.

- Eu andei meio doente, um resfriado, esperei ficar bom antes de sair de casa. – Menti. Inventei uma desculpa sem me preocupar em esconder minha mentira, era tão lógico que algo mais havia ocorrido comigo, pois até meu trabalho eu havia perdido.

- Sei bem. Espero que você arrume alguma coisa pra fazer, se não daqui um tempo nem dinheiro pra tomar uma cerveja você vai ter. Essa aqui é por conta da casa, mas não acostuma, seu maluco. – Geraldo sorriu e voltou a conversar com o pessoal ao meu lado.

Olhei para rua que continuava movimentada, deveria ser por volta das 21 horas, esse movimento não passaria da 1 hora da madrugada, cidade do interior funciona assim, passando da meia noite as pessoas saem das ruas e vão para outros lugares. A rua fica deserta.

- Sumiu o Madruga, e pelo que o Jorge tava falando até aquele bando de sem teto que ficava na praça da estação ferroviária desapareceu, eram uns cinco ou seis, acho que apenas um foi encontrado perto do cemitério, acho que levaram ele pra uma clinica de doido, O cara não tava falando coisa com coisa. – o comentário do Geraldinho me fez voltar à atenção para o trio de homens que papeavam sobre os sumiços. O que me chamou atenção foi o lugar citado, a praça da estação. A praça que usei o orelhão para telefonar para o 190; a antiga estação, foi com esse lugar que sonhei por dias e noites. Estranhamente o que esses homens falavam fazia sentido na minha cabeça, só não sabia ainda qual sentido.

- Vai ver eles se juntaram e foram embora para outra cidade, ou pegaram eles forçados e levaram para outro município. Nenhum corpo, nada. – o homem careca levanta essa hipótese.

- Acho que não, não acharam corpos, mas acharam sangue na arvore aqui da praça e na estação meia parede velha foi derrubada, aquela parede que ficava entre o terreno do viaduto e uma casinha velha que pertence à estação, era o abrigo dos moradores de rua, e havia marca de brigas por todo lado; vai ver acharam alguma coisa lá, mas a policia encobre tudo para não queimar a imagem da cidade. - Todos pensavam e davam sugestões, imaginavam de tudo, era o assunto do momento.

Eu cortei a conversa com uma pergunta brusca.

- Desde quando começou a acontecer essa porra toda? – perguntei serio, todos se calaram, era como se eu fosse um forasteiro. Geraldinho me responde sem se surpreender com minha pergunta.

-Dizem que faz uns cinco ou seis dias, quase uma semana. Você ficou sumido nesse meio tempo, será que não tem nada a ver com isso, não? – Todos dão risada, o homem careca bate nas minhas costas duas vezes, o álcool corria no sangue dos homens do bar.

- É, vai saber, às vezes eu estou pelos meios e nem sabia. - Um frio corre pelas minhas costas, um leve medo expresso. Geraldinho aumenta o volume do rádio, tocava um som do Stevie Ray Voughan, pessoas falando, carros passando e eu devagando.

- E ai cara, finalmente saiu das catacumbas, deu o ar da sua graça – Alexandre, uma das figuras carimbadas do bar, chega batendo em minhas costas e sorrindo de suas próprias palavras.

- E aí, Xande, ainda assombrando o bar do Geraldo? – disse a ele em tom de cumprimento.

- Aí Geraldo, me manda um Absinto aí. – Alexandre pede sua bebida e comenta sobre algum incidente. – Você viu os rumores que andam pela cidade, pensam que algum grupo está caçando quem mora na rua. Eu não acredito nisso não, caso fosse iam deixar os corpos pelas ruas como uma assinatura. Papo de gente inocente. – Alexandre fala olhando para o trio de homens ao meu lado.

- Se for pra você beber essa merda e dar trabalho aqui no bar, é melhor ir pra outro lugar se não vou quebrar suas pernas, maluco beleza. – Geraldinho fala servindo a bebida, e pergunta com certa curiosidade. – O que você acha que acontece -.

- Eu não acho nada. Vai ver é o anjo da morte que chegou à cidade tocando o terror – Alexandre sorri contente com sigo mesmo.

- Seu maluco, e vai fumar essa porra de cigarro lá pra fora, se não vou ser multado, e eu não pago multa. – Geraldo passa o pano no balcão, mas no fundo gostava da presença do ser conhecido como Xandão.

Saímos, ficamos em pé na rua, conversando por um tempo. Percebia que aos poucos o bar se esvaziava, a praça sempre cheia esse horário estava vazia.

- As pessoas estão com medo. Normalmente a cidade ficava morta depois da meia noite, mas agora ficava vazia e com medo. Mas eu gosto, perambulo de madrugada pra todo lado. Ontem mesmo fui até o cemitério, pulei o muro e fiquei a noite toda na pracinha central do cemitério, debaixo da arvore. Fui embora quando o sol nasceu. – comenta Alexandre. Ele era uma pessoa diferente, bem repulsiva para quem não o conhecia. Era alto, pálido, sempre com sua camisa preta suja, e uma cartola que cobria parte de seus longos cabelos lisos. Era singular.

A continuação dessa noite será postado na segunda parte desse conto.

Thiago

OBS: Seqüencia do conto 1. Para quem quiser acompanhar o início de tudo.

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